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Desigualdade socioeconômica no acesso aos serviços de saúde no Brasil: um estudo comparativo entre as regiões brasileiras em 1998 e 2008

Resumos

Este artigo mensura a desigualdade socioeconômica no acesso aos serviços de saúde no Brasil e regiões, em 1998 e 2008. A análise controla por fatores predisponentes, capacitantes e de necessidade. Os resultados mostram um aumento das taxas de utilização e redução das desigualdades no cuidado primário, especialmente entre indivíduos sem plano sugerindo melhora nos serviços públicos. A exceção é a utilização de serviços odontológicos, que ainda apresenta desigualdade elevada e maior utilização entre indivíduos com plano. Para o indicador de problema de acesso, observa-se ainda desigualdade favorável aos ricos. Ao controlar para plano de saúde, essa desigualdade se reduz consideravelmente.

Equidade; Equidade no Acesso; Sistema Único de Saúde; Serviços de Saúde


This paper measures inequalities in healthcare access in Brazil and each region in 1998 and 2008. The analysis controls for predisposing, enabling and need factors. The results show an increase of utilization rates and reduction of inequalities in primary care, especially among uninsured individuals, which suggest an improvement in the public health sector. The exception is the utilization of dentistry visits that still presents high social inequality and higher utilization rates among insured individuals. Regarding the variable "difficulty of access" results showed pro-rich inequality. After controlling for health insurance coverage, this inequality decreases in a great amount.

Equity; Helth Equity; Sistema Único de Saúde; Health Services


ARTIGOS

ICentro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (CEDEPLAR/UFMG). E-mail: mviegas@cedeplar.ufmg.br

IICEDEPLAR/UFMG. E-mail: knoronha@cedeplar.ufmg.br

IIICEDEPLAR/UFMG. E-mail: renata@cedeplar.ufmg.br

IVEscola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (EENF/UFMG). E-mail: michellenep@hotmail.com

VCEDEPLAR/UFMG. E-mail: carlarbarros@yahoo.com.br

VIEENF/UFMG. E-mail: drmmartins@yahoo.com.br

VIIEENF/UFMG. E-mail: lucasgomes_cp@hotmail.com

RESUMO

Este artigo mensura a desigualdade socioeconômica no acesso aos serviços de saúde no Brasil e regiões, em 1998 e 2008. A análise controla por fatores predisponentes, capacitantes e de necessidade. Os resultados mostram um aumento das taxas de utilização e redução das desigualdades no cuidado primário, especialmente entre indivíduos sem plano sugerindo melhora nos serviços públicos. A exceção é a utilização de serviços odontológicos, que ainda apresenta desigualdade elevada e maior utilização entre indivíduos com plano. Para o indicador de problema de acesso, observa-se ainda desigualdade favorável aos ricos. Ao controlar para plano de saúde, essa desigualdade se reduz consideravelmente.

Palavras-chave: Equidade; Equidade no Acesso; Sistema Único de Saúde; Serviços de Saúde.

ABSTRACT

This paper measures inequalities in healthcare access in Brazil and each region in 1998 and 2008. The analysis controls for predisposing, enabling and need factors. The results show an increase of utilization rates and reduction of inequalities in primary care, especially among uninsured individuals, which suggest an improvement in the public health sector. The exception is the utilization of dentistry visits that still presents high social inequality and higher utilization rates among insured individuals. Regarding the variable "difficulty of access" results showed pro-rich inequality. After controlling for health insurance coverage, this inequality decreases in a great amount.

Keywords: Equity; Helth Equity; Sistema Único de Saúde; Health Services.

JEL classification: I10,I14.

1 Introdução

As duas últimas décadas no Brasil são marcadas por mudanças sociais importantes caracterizadas, sobretudo, pela redução da desigualdade e da pobreza. Essa redução ocorre para o país como um todo, mas de forma diferenciada entre as regiões. No Brasil, entre 1990 e 2009, o coeficiente de Gini, que mede a desigualdade de renda, reduziu-se em quase 12%, variando de 0,61 para 0,54. Essa redução foi observada em todas as regiões, sendo maior no Sul e no Sudeste, com quedas de 15% e 11,5%, e menor no Centro Oeste (8,3%). Mudanças mais acentuadas foram observadas para as taxas de pobreza. No Brasil, em 1990, a taxa de pobreza era igual a 41,92 caindo para 11,60 em 2009. Entre as regiões, as maiores quedas foram observadas para o Sul, Centro Oeste e Sudeste, 68%, 63% e 57% respectivamente. Apesar dessas reduções, diferenças regionais marcantes ainda estão presentes. Em 2009, enquanto nas regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste a taxa de pobreza estava em torno de 12, no Nordeste e Norte esse valor era em torno de 40 e 32,54 respectivamente (IPEA 2011).

Em relação aos indicadores epidemiológicos essa tendência de melhora antecede as duas últimas décadas e acompanha o processo de mudança social recente. De 1950 a 2010, a taxa de mortalidade infantil reduziu de 135 para 20 mortes por mil nascidos vivos. Nesse mesmo período, a expectativa de vida ao nascer aumentou de 50 para 73 anos (Gragnolati et al. 2011).

Essas mudanças estão associadas tanto ao contexto das políticas macroeconômicas ressaltando o controle inflacionário e a estabilização econômica que permitiram a retomada do crescimento, como também ao contexto institucional que preconizou as políticas sociais. Entre as principais políticas sociais cabe mencionar os programas de transferência de renda, a expansão da cobertura escolar, principalmente no ensino fundamental, e a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) com ênfase na atenção primária (Victora, Aquino, Leal, Monteiro, Barros & Szwarcwald 2011, Victora, Barreto, Leal, Monteiro, Schmidt & Paim 2011, Paim et al. 2011, Guanais 2010).

Com a criação do SUS em 1988, o estado brasileiro assumiu a responsabilidade da oferta e financiamento de todos os serviços de saúde. Desde então, diversas políticas têm sido implementadas e operacionalizadas buscando garantir oferta mais eficiente e equitativa (Médici 2011). A equidade no acesso aos serviços de saúde é uma preocupação presente nos países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento. De acordo com o princípio de equidade, o acesso aos serviços de saúde deve ocorrer de acordo com a necessidade de cuidados independentemente da condição socioeconómica dos indivíduos (Culyer & Wagstaff 1993, Braverman 2006). Essa preocupação decorre principalmente do efeito do estado de saúde sobre o bem-estar individual. Esse efeito pode ser direto, na medida em que estar doente implica em perda de utilidade, e indireto, dado que a capacidade produtiva dos indivíduos depende do estado de saúde. Quanto maior o nível de saúde de uma pessoa, maior a sua disposição ao trabalho, havendo, portanto, uma relação positiva entre o nível de saúde individual e nível de renda (Alves & Andrade 2003, Luft 1975, Schultz & Tansel 1997, Thomas & Strauss 1997).

No Brasil, diversos estudos analisaram a presença de desigualdades soci-oeconômicas no acesso aos cuidados com a saúde (Almeida et al. 2000, Campino et al. 1999, Neri & Soares 2002, Nunes et al. 2001, Travassos et al. 2000, 2006, Viacava et al. 2001, Szwarcwald et al. 2010). A maioria dos trabalhos utilizou informações domiciliares com abrangência nacional no qual o acesso foi mensurado por medidas de utilização ou procura pelos serviços de saúde. As principais fontes de informação foram a Pesquisa sobre Padrão de Vida - PPV, 1996/97 (Travassos et al. 2000, Campino et al. 1999) a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição, 1989 (Almeida et al. 2000, Travassos et al. 2000), e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD - 1998 e 2003 (Neri & Soares 2002, Travassos et al. 2006, Viacava et al. 2001). O status so-cioeconômico foi medido principalmente por variáveis de renda e escolaridade. A desigualdade social no acesso foi analisada para os serviços de saúde como um todo (Almeida et al. 2000, Travassos et al. 2006, Viacava et al. 2001, Szwarcwald et al. 2010) ou segundo o tipo de cuidado: cuidados preventivos e curativos (Campino et al. 1999, Neri & Soares 2002), ambulatoriais ou hospitalares (Almeida et al. 2013, Castro et al. 2005, Macinko & Lima-Costa 2012, Noronha & Andrade 2005, Travassos et al. 2000). Alguns estudos estratificaram a análise considerando a presença de cobertura privada de seguro (Almeida et al. 2013, Macinko & Lima-Costa 2012, Neri & Soares 2002, Nunes et al. 2001, Travassos et al. 2000, Szwarcwald et al. 2010). Essa distinção é importante uma vez que o sistema de saúde brasileiro é constituído também do setor de saúde suplementar, o que permite dupla entrada no sistema principalmente para grupos sociais mais favorecidos. Esse desenho institucional pode alimentar a desigualdade no acesso aos serviços de saúde.

Os principais resultados encontrados na literatura nacional revelaram a presença de desigualdades no acesso aos serviços de saúde no país, muito embora tenham sido encontradas evidências de redução dessa desigualdade nos últimos anos (Almeida et al. 2013, Macinko & Lima-Costa 2012) e entre as regiões (Travassos et al. 2000, 2006). Essa desigualdade foi mais acentuada para cuidados preventivos. Segundo esses estudos, indivíduos mais pobres procuraram menos cuidado preventivo em relação aos mais ricos. A ausência de desigualdade social foi observada entre indivíduos em estado de morbidade mais severa: em situações de maior necessidade, especialmente de cuidados curativos, os indivíduos obtiveram os serviços independentemente da posição socioeconômica (Neri & Soares 2002, Viacava et al. 2001, Szwarcwald et al. 2010). Para o cuidado hospitalar não houve evidências de desigualdades sociais favoráveis aos mais ricos (Almeida et al. 2013, Castro et al. 2005, Macinko & Lima-Costa 2012, Noronha & Andrade 2005). Pelo contrário, se havia desigualdades sociais estas eram favoráveis aos grupos socioeconômicos menos favorecidos. Em parte esse resultado se deve à diferença de severidade com que os grupos sociais procuram os serviços hospitalares. Os indivíduos mais pobres, por terem menos acesso aos serviços preventivos, chegam ao sistema de saúde com estado de saúde mais precário e, apresentam, portanto, maior necessidade de internação vis a vis os indivíduos mais ricos.

O objetivo principal deste artigo é avaliar a presença de desigualdades socioeconômicas no acesso aos serviços de saúde no Brasil considerando dois anos, 1998 e 2008. Dada a presença de fortes desigualdades regionais e o contexto de um sistema de saúde misto, analisou-se especificamente como essa desigualdade se manifesta entre as grandes regiões brasileiras e segundo a presença de cobertura privada de plano de saúde. Este estudo se diferencia dos demais na medida em que o acesso foi medido considerando duas categorias de variáveis proxies. A primeira compreende uma variável de procura corrigida pela demanda não observada. A demanda foi definida como não observada em situações em que os indivíduos procuraram os serviços e não foram atendidos ou quando mesmo havendo necessidade, os indivíduos não procuraram o cuidado por restrições financeiras, dificuldade de transporte e tempo, entre outros. A segunda compreende um conjunto de medidas usuais de utilização dos serviços de saúde e um indicador para a cobertura do Programa de Saúde da Família (PSF).

2 Metodologia

2.1 Fonte de Informação

A fonte de informação utilizada foi a PNAD, para os anos de 1998 (IBGE 1998) e 2008 (IBGE 2008), os quais contém um suplemento especial sobre saúde. A PNAD é uma pesquisa domiciliar realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com periodicidade anual e cobertura nacional, com desagregação para grandes regiões e unidades da federação. Na região Norte, para o ano de 1998, a PNAD abrange apenas a área urbana, exceto em Tocantins. Para esta análise, a fim de obter comparabilidade amostral, foram excluídos os domicílios localizados na área rural de Tocantins em 1998 e os domicílios localizados na área rural de toda a região Norte em 2008.

A pesquisa apresenta desenho amostral complexo envolvendo estratificação, conglomeração, probabilidades desiguais de seleção e ajustes dos pesos para calibração, sendo necessária a utilização dos pesos amostrais na construção de indicadores e estimação de parâmetros (Silva et al. 2002).

2.2 Análise de Dados

Para avaliar a desigualdade social no acesso aos serviços de saúde, foram construídos índices de concentração. O Índice de Concentração (IC) é derivado da literatura de distribuição de renda e mede a relação entre a proporção acumulada da população, ordenada de forma crescente pelo nível socioeconómico contra a proporção acumulada de indivíduos de acordo com a variável de saúde de interesse (O'Donnell et al. 2008). Os valores do IC variam entre -1 e 1. Um valor igual a zero indica ausência de desigualdade social enquanto valor igual a 1 ou -1 indica que somente os indivíduos mais ricos ou mais pobres, respectivamente, apresentam o atributo de saúde analisado. A principal vantagem do uso do IC em relação à construção de taxas de utilização ou razões de chance entre grupos socioeconómicos é que o IC considera as diferenças na variável de interesse ao longo de toda a distribuição de renda.

A estimação do IC é realizada por meio de uma regressão de mínimos quadrados ordinários (equação 1):

A variável dependente é uma transformação da variável proxy para acesso hi. Essa transformação considera a distância de cada indivíduo em relação à média populacional da variável de acesso µ, ponderada pela variância da variável socioeconómica σr2 . A variável independente de interesse ri é a posição do indivíduo na distribuição de renda acumulada. O coeficiente estimado β refere-se ao IC e o nível de significância é avaliado com base no teste t-student, incorporando a correção pela variabilidade amostral. Xij corresponde às variáveis de controle que são importantes para a determinação da utilização de serviços de saúde. Para estimação do IC foi utilizado o algoritmo proposto por O'Donnell et al. (2008) para o programa Stata 10, o qual incorpora os pesos amostrais para correção do desenho amostral.

A representação gráfica do IC é a Curva de Concentração (CC) medida pela área delimitada pela curva e pela diagonal. A diagonal representa perfeita igualdade na distribuição, com IC igual a zero. Para CC abaixo (acima) da diagonal, o IC é positivo (negativo). A CC também pode cruzar a diagonal e, nesses casos, o cálculo do IC não reflete a magnitude total da desigualdade social. Desse modo, é importante verificar se a CC cruza a diagonal. Para verificar se a desigualdade social no acesso aos serviços de saúde é estatisticamente diferente entre 1998 e 2008, foram realizados testes de dominância entre as curvas de concentração (O'Donnell et al. 2008). A hipótese nula testada é a de que não há dominância entre as CC. No caso de a hipótese H0 ser rejeitada, as diferenças na desigualdade social no acesso aos serviços de saúde entre os dois anos analisados são estatisticamente significativas. Para a realização do teste de dominância, a regra de decisão considerada foi o Multiple Comparison Approach (MCA). De acordo com essa regra, para que a hipótese nula H0 seja rejeitada, é necessário que ao menos um ponto da distribuição apresente diferença estatisticamente significativa entre as duas CC. Por exemplo, se um quantil da distribuição da CC de 1998 estiver significativamente acima da CC de 2008 e os demais pontos da distribuição da CC de 2008 não estiverem acima da CC de 1998, então é possível dizer que a CC de 1998 domina a de 2008. O teste é realizado com base na abordagem de comparação múltipla, no qual os valores críticos utilizados consideram a distribuição do Quociente de Variâncias Múltiplas. Para a realização do teste de dominância, foram definidos 19 quantis igualmente espaçados ao longo de toda distribuição (O'Donnell et al. 2008).

Uma abordagem alternativa é a Intersection Union Principle (IUP) que requer que as diferenças observadas ao longo de todos os pontos (quantis) da distribuição sejam estatisticamente significativas para que a hipótese nula seja rejeitada. Por ser uma regra de decisão mais rigorosa, optou-se por utilizar apenas o teste MCA. Mais detalhes sobre o método dos testes de dominância ver O'Donnell et al. (2008).

2.3 Variáveis dependentes

Neste trabalho, além dos indicadores de utilização, analisou-se o acesso por meio de uma variável de procura corrigida pela demanda não observada. Essa variável permite captar as dificuldades de acesso que antecedem à utilização. Para sua construção foram utilizadas três perguntas da PNAD: 1) Nas duas últimas semanas procurou algum lugar, serviço ou profissional de saúde para atendimento relacionado à própria saúde?; 2) Nesta primeira vez que procurou atendimento de saúde foi atendido?; 3) Nas duas últimas semanas por que motivo não procurou atendimento de saúde? Considerou-se que o indivíduo teve problemas de acesso quando este procurou os serviços de saúde e não foi atendido ou quando não procurou, mas teve necessidade. Desse modo, atribuiu-se a essa variável valor igual a 1 se o indivíduo teve problemas de acesso e 0, caso contrário. Os principais motivos do não atendimento estão relacionados a problemas de oferta. Nos dois anos analisados, 80% dos indivíduos reportaram que não recebeu o cuidado de saúde demandado devido à falta de vaga ou senha, ausência de médico ou inexistência de serviços ou profissionais especializados. No caso dos motivos associados a não procura, excluindo os que não tiveram necessidade de cuidado, a principal razão está associada à falta de dinheiro, seguida de atendimento muito demorado.

O acesso aos serviços de saúde foi também analisado através de uma medida sobre a cobertura de Programa de Saúde da Família (PSF). Essa variável está disponível apenas no suplemento de saúde da PNAD de 2008 e informa se o domicílio está cadastrado na unidade de saúde da família. Essa medida é uma proxy para o acesso aos serviços de saúde no SUS. Recentemente, alguns estudos têm enfatizado a importância do PSF para melhoria de acesso aos serviços do setor público, em especial aos cuidados de atenção básica entre as camadas de renda mais baixa no Brasil (Almeida et al. 2013, Macinko & Lima-Costa 2012).

A utilização dos serviços de saúde foi avaliada por meio de quatro indicadores contemplando diferentes tipos de serviços: ambulatorial (realização de consulta médica nos últimos 12 meses e número médio de consultas condicionado a ter consultado o médico pelo menos uma vez nos últimos 12 meses), hospitalar (internação nos últimos 12 meses) e consulta odontológica (realização de consulta nos últimos dois anos).

2.4 Variável Socioeconômica

A variável socioeconômica utilizada para definir a posição do indivíduo na distribuição de renda acumulada foi renda familiar per capita em valores correntes de 1998 e 2008, mensurada como variável contínua.

2.5 Variáveis de Controle

De acordo com o modelo de Andersen (Andersen & Newman 1973, Andersen 1995) alguns grupos de fatores são importantes para a determinação da utilização de serviços de saúde. O primeiro grupo refere-se aos fatores predisponentes como a composição demográfica. A utilização de serviços de saúde tem um componente forte de ciclo de vida e, em geral, são percebidas diferenças na longevidade entre grupos socioeconômicos. Além disso, existem diferenças na utilização dos serviços de saúde por sexo: as mulheres tendem a utilizar mais os serviços de saúde tanto por motivos preventivos como em decorrência da função reprodutiva. O segundo grupo refere-se a necessidades de saúde, percebidas ou avaliadas por profissionais de saúde. Indivíduos mais pobres, em geral, apresentam estado de saúde mais precário que indivíduos mais favorecidos determinando condições muito diferenciadas de necessidades de cuidados. Nesse sentido, a estimação de um índice de concentração que não considera essas diferenças pode subestimar as desigualdades. O terceiro grupo refere-se aos fatores capacitantes que consistem dos recursos individuais para obter os cuidados da saúde. No contexto brasileiro, a cobertura de plano de saúde tem um papel relevante na oferta dos serviços de saúde, sendo importante entender em que medida a presença de cobertura privada é o elemento gerador dessas iniquidades. Os grupos socioeconómicos mais altos têm maior probabilidade de ter plano de saúde determinando dupla entrada no sistema de saúde e, portanto, acesso diferenciado.

Nesse contexto, os índices de concentração foram estimados em quatro modelos que controlam por esses fatores. As covariáveis incluem idade, mensurada na forma contínua, e variáveis binárias para sexo, presença de plano de saúde e medidas de estado de saúde autorreportadas (presença de doenças crônicas e estado de saúde geral). Para o indicador de doenças crônicas atribuiu-se valor igual a 1 caso o indivíduo tenha reportado ter pelo menos uma das doenças crônicas contidas na PNAD (doença de coluna ou costas; artrite ou reumatismo; câncer; hipertensão; diabetes; asma ou bronquite; depressão; doença do coração; doença renal crônica; tuberculose; tendinite ou tenossinovite; cirrose). Para o indicador de estado de saúde geral, atribuiu-se valor igual a 1 se o indivíduo avaliou seu estado de saúde como muito ruim ou ruim e 0 se avaliou como regular, bom e muito bom.

Para entender como esses fatores explicam a desigualdade social no acesso aos serviços de saúde, os índices de concentração foram estimados inicialmente sem a inclusão das covariáveis, seguido da inclusão sequencial de cada um desses grupos de fatores. No modelo 1, nenhuma covariada foi inserida, ou seja, os IC foram estimados sem realizar qualquer padronização. O modelo 2 corrige para as diferenças demográficas (sexo e idade). O modelo 3 adiciona ao modelo 2 as covariadas referentes ao estado de saúde: doenças crônicas e estado de saúde geral. Por fim, o modelo 4 adiciona ao modelo 3 a covariada de cobertura de plano de saúde privado. No caso do indicador de problemas de acesso, consideramos relevante apenas o controle por cobertura de plano de saúde (modelo 6) uma vez que a própria definição da variável é condicionada ao indivíduo ter tido necessidade de obter o cuidado. A padronização por estado de saúde não foi realizada para os IC estimados para serviços odontológicos. As variáveis de morbidade presentes na PNAD não incorporam medidas específicas da saúde bucal. Os resultados para consultas odontológicas padronizados por sexo, idade e plano de saúde foram estimados pelo modelo 5.

3 Resultados

Esta seção apresenta uma análise descritiva dos indicadores de acesso por região. Posteriormente, são apresentados os resultados dos índices de concentração. A análise é realizada para dois pontos no tempo - 1998 e 2008. Os indicadores de acesso e os índices de concentração também foram estimados para o ano de 2003, mas como os resultados das estimações realizadas para esse ano não alteraram as conclusões gerais encontradas neste artigo, a análise se ateve apenas aos dois pontos extremos no tempo: 1998 e 2008.

3.1 Análise dos indicadores médios de acesso

Esta seção apresenta a média das variáveis de acesso aos serviços de saúde. Como a análise proposta envolve comparação regional e em dois períodos, todos os indicadores foram padronizados para considerar diferenças da estrutura demográfica (idade e sexo) entre as populações. A estrutura etária e de sexo padrão é a população observada no Brasil em 1998. A análise foi realizada para os anos de 1998 e 2008, segundo cobertura privada de saúde, considerando o Brasil e grandes regiões, e por quintis de renda. Os resultados são mostrados na Tabela 1 (resultados por grandes regiões e presença de cobertura privada de saúde) e na Tabela 2 (resultados por quintis de renda familiar per capita). A padronização não foi realizada para o indicador de cobertura do PSF, uma vez que a visita é realizada por unidade domiciliar e essa informação está disponível apenas para o ano de 2008.

A análise sugere uma ampliação do acesso aos serviços de saúde em todas as regiões brasileiras, tanto para a população com plano quanto para a população sem plano, e em todos os grupos de renda. No Brasil, em 1998, 4,75% dos indivíduos sem cobertura privada de saúde apresentaram algum problema de acesso, ou seja, reportaram não ter conseguido atendimento da primeira vez que procuraram ou não procuraram os serviços de saúde apesar de terem tido necessidade. Em 2008, esse percentual se reduziu para 3,97. Essa redução foi observada em todos os quintis de renda. A presença de cobertura de saúde parece minimizar o problema de acesso. Para os dois anos analisados, essa proporção foi inferior a 1,5%. Entre as regiões, as que apresentaram menos problemas de acesso foram as regiões Sul e Sudeste.

A análise dos indicadores de utilização de consultas médicas e serviços odontológicos sugere uma maior utilização em 2008 comparado com 1998. Os resultados mostraram uma melhora em todas as variáveis de utilização analisadas, principalmente para a população sem plano de saúde e entre os grupos de renda mais baixa. No entanto, indivíduos sem cobertura privada e com menor nível socioeconômico ainda apresentam menor probabilidade de utilização dos serviços de saúde e menor número médio de consultas.

A proporção de indivíduos que consultou o médico aumentou consideravelmente entre 1998 e 2008. Para o Brasil, em 1998 cerca de 50% dos indivíduos sem cobertura privada de saúde realizou pelo menos uma consulta médica nos últimos 12 meses que antecederam a pesquisa, enquanto que em 2008 esse percentual se elevou para 63,2%. Para os indivíduos com cobertura, esse percentual era igual a 70,5% em 1998 e 79% em 2008.

Analisando por grupos socioeconômicos, observa-se um aumento mais acentuado da utilização de consultas médicas entre os grupos de renda mais baixa. Entre os indivíduos do primeiro quintil de renda, esse percentual aumentou de 46,4% para 60,3%, enquanto para o quintil de renda mais elevada, de 65,3% para 75,2%. O indicador referente ao número médio de consultas médicas também apresentou um aumento entre os dois anos analisados, sendo este percebido em todas as regiões.

Em relação à consulta odontológica, os resultados evidenciam mais uma vez uma melhora em todas as regiões, sendo esta mais acentuada para a população sem cobertura e para os grupos de renda mais baixa. Entre as regiões, o Nordeste e o Norte se destacaram por apresentarem menores taxas de utilização para os indivíduos sem plano privado de saúde.

A proporção de indivíduos internados foi o único indicador que apresentou uma redução entre 1998 e 2008, considerando o país como um todo. Entre as regiões, não foi possível estabelecer um padrão de comportamento nesse período.

No que se refere ao cadastramento domiciliar no PSF, observa-se uma maior cobertura entre indivíduos sem plano de saúde. Entre os indivíduos sem plano, 57% estão cadastrados em uma unidade de saúde da família enquanto entre os que têm plano, esse percentual está em torno de 34%. A cobertura do PSF é mais alta nas regiões Nordeste e Sul, e menor no Sudeste (Tabela 1). A análise do comportamento da cobertura do PSF por níveis de renda sugere equidade no acesso a esses serviços. Como observado na Tabela 2, a cobertura do PSF cresce com a redução da renda, sendo duas vezes maior para os indivíduos do primeiro e segundo quintis.

3.2 Índices de Concentração

A Tabela 3 mostra os resultados dos índices de concentração estimados para os indicadores de acesso nos anos de 1998 e 2008, e a Tabela 4 apresenta os resultados dos testes de dominância das CC entre os dois anos analisados. Para o indicador de problemas de acesso aos serviços de saúde, observou-se, no Brasil, a presença de iniquidades estatisticamente significativas favoráveis aos grupos socioeconómicos mais ricos. Entre os dois anos analisados, o comportamento do IC diferiu entre as regiões. Na região Sudeste, houve uma diminuição importante na desigualdade social - o IC sem padronização reduziu de |0,27| para |0,20|. Essa redução é significativa a 5%, na medida em que se constata dominância estatística da CC de 1998 em relação a CC de 2008 (Tabela 4). Para as demais regiões, muito embora o IC tenha sofrido um pequeno aumento entre os dois anos analisados, essa diferença não é significativa. Em 2008, o Centro-Oeste foi a região com a maior iniquidade de acesso, enquanto o Nordeste e o Norte se mantiveram como as regiões com menores iniquidades. A análise dos IC para as medidas de utilização dos serviços médicos ambulatoriais - probabilidade de consultar o médico e número médio de consultas realizadas - sugere presença de iniquidade nos dois anos analisados em todas as regiões brasileiras. No entanto, a magnitude é pequena tanto para a probabilidade de receber consulta médica como para o montante de consultas realizado. Ao longo do período observou-se redução dessas iniquidades e essas reduções foram significativas para o Brasil e a maioria das regiões (Tabelas 3 e 4). Os IC em 2008 foram inferiores a 0,05 para probabilidade de consultar o médico e inferiores a 0,04 para o número de consultas. No caso de montante de consultas médicas ocorreu redução para todas as regiões exceto para o Norte e Centro-Oeste. A maior redução ocorreu na região Sul onde a desigualdade se inverteu passando a ser favorável aos mais pobres.

Análogo ao observado para serviços ambulatoriais, os IC atinentes à utilização de serviços hospitalares apontaram para presença de iniquidade pouco expressiva nos dois anos analisados e em todas as regiões. Apesar da pequena magnitude, ressalta-se que a direção da desigualdade na utilização desse tipo de cuidado foi favorável aos grupos socioeconómicos mais pobres em todas as regiões analisadas.

No caso da cobertura do PSF, observa-se também a presença de desigualdade favorável aos grupos de renda mais baixa, com IC estimado para o Brasil igual a -0,14. Essa desigualdade é maior no Sudeste (IC: -0,17) e menor no Norte (IC: -0,05) e no Nordeste (IC: -0,07).

Dentre os indicadores analisados, a utilização de consultas odontológicas é o que apresentou a maior iniquidade favorável aos mais ricos. A comparação entre 1998 e 2008 revelou queda significativa da iniquidade em todas as regiões (exceto região Norte), resultando em redução da desigualdade interregional.

A inclusão das covariadas associadas a características demográficas (modelo 2) e de saúde (modelo 3) evidencia efeitos diferenciados nos IC dependendo do tipo de serviço. A padronização por sexo e idade (modelo 2) diminuiu as iniquidades na utilização de serviços médicos ambulatoriais e aumentou a iniquidade na utilização de serviços hospitalares. Por outro lado, ao controlar pelo estado de saúde individual (modelo 3), observou-se aumento da iniquidade para os indicadores de utilização de serviços médicos ambulatoriais e redução da iniquidade para o indicador de internações.

A padronização por cobertura de plano de saúde diminuiu as iniquidades presentes na utilização de serviços médicos ambulatoriais (modelo 4) e serviços odontológicos (modelo 5) no Brasil e em todas as regiões. Esse comportamento também foi observado para o indicador de problemas de acesso (modelo 6). No caso de internações hospitalares, ao controlar pela presença de cobertura de plano de saúde, a iniquidade favorável aos grupos socioeconômicos mais pobres foi acentuada (modelo 4). O oposto é verificado para cobertura do PSF onde se observa uma redução da desigualdade favorável aos mais pobres após a inclusão dessa variável de controle (modelo 4).

Como apresentado na metodologia, a análise gráfica das curvas de concentração (CC) é complementar à estimação dos IC. Para todos os IC estimados, o comportamento da CC correspondente foi monotônico em relação à renda, não cruzando a diagonal (Figuras 1 a 6). Esse comportamento da CC garante a interpretação da magnitude do IC como uma medida da iniquidade.


4 Discussão

A análise da utilização dos serviços de saúde no Brasil no período 1998-2008 sugere uma melhora, principalmente na área do cuidado primário. Essa melhora ocorreu tanto no aumento das taxas de utilização como na redução das desigualdades sociais, especialmente para os indicadores de consulta médica e consulta odontológica. No Brasil, o IC relativo à utilização de consultas médicas reduziu de 0,07 para 0,04, um decréscimo de cerca de 50%. Ao padronizar por idade e sexo, observou-se uma diminuição da desigualdade favorável aos ricos. Esse resultado reflete a estrutura etária mais envelhecida dos grupos de maior renda. Por outro lado, a inclusão das medidas que controlam para o estado de saúde aumentou a desigualdade social, evidenciando as piores condições de saúde dos indivíduos mais pobres (Noronha & Andrade 2002, Ribeiro et al. 2006, Van Doorslaer et al. 1997). Em trabalho recente, Szwarcwald et al. (2010), ao utilizar dados da Pesquisa Mundial de Saúde para analisar a utilização do cuidado ambulatorial, aponta o bom desempenho do sistema de saúde brasileiro na redução das desigualdades socioeconômicas quando a necessidade de cuidado é mais intensa.

Os resultados do presente artigo são consistentes com os encontrados por Macinko & Lima-Costa (2012) e Almeida et al. (2013), sugerindo a robustez dessa tendência de melhoras ao longo da última década no sistema de saúde brasileiro. Utilizando a mesma base de dados, esses autores mostram melhoras tanto na cobertura quanto na redução das desigualdades da utilização dos serviços de saúde. O método de análise baseia-se na construção dos IC e do Índice de Desigualdade Horizontal. Além disso, Macinko & Lima-Costa (2012) fazem uma análise de decomposição da desigualdade para entender quais os componentes que melhor explicam a desigualdade na utilização dos serviços de saúde. Nosso estudo contribui para essa literatura na medida em que, além dos indicadores de utilização, mensura a desigualdade para dois indicadores proxy do acesso aos serviços de saúde: demanda não observada e cobertura do PSF. Um dos grandes desafios para mensurar equidade é considerar indicadores de acesso e não somente indicadores de utilização. A demanda não observada permite mensurar a dificuldade de acesso que antecede a utilização, enquanto a cobertura do PSF é a porta de entrada da população no sistema público de saúde que não seja através do cuidado emergencial.

Os maiores ganhos nas taxas de utilização de consulta médica foram percebidos entre os indivíduos sem plano de saúde sugerindo uma melhora na cobertura dos serviços ofertados pelo SUS. De acordo com Ribeiro et al. (2006), o perfil sociodemográfico dos usuários do SUS apresenta baixa escolaridade, menor nível de renda e ausência de cobertura privada de saúde. No Brasil, as políticas públicas têm contribuído para um melhor acesso aos serviços de saúde especialmente entre os pobres (Paim et al. 2011). Os esforços do governo para aumentar a cobertura de cuidados primários e preventivos têm sido implementados principalmente através do Programa Saúde da Família (PSF), criado em 1994 (CONASS 2011 b). O programa é centrado na família e enfatiza o atendimento ambulatorial em detrimento da lógica hospitalocêntrica, historicamente experimentada no Brasil (Mendes 2009). Atualmente, a cobertura do PSF é consideravelmente alta, principalmente em áreas rurais e pobres, contribuindo para a redução das desigualdades no acesso aos cuidados de saúde no Brasil (Goldbaum et al. 2005, Marques & Mendes 2003, Ministério da Saúde 2011, Rocha 2010, Senna 2002). Os resultados encontrados no presente estudo para a cobertura do PSF reforçam ainda mais essas evidências, uma vez que o percentual de domicílios cadastrados é maior para os indivíduos de baixa renda e sem plano de saúde. Além disso, os ICs estimados para medir a desigualdade socioeconômica na cobertura do PSF evidenciam a focalização entre indivíduos mais pobres. A comparação inter-regional sugere que o PSF é um elemento compensador das desigualdades socioeconômicas e regionais na atenção primária no Brasil. No Nordeste, que é uma região reconhecidamente mais pobre, a cobertura é mais universalizada e o IC pró-pobre é mais baixo. No caso do Sudeste, a cobertura do PSF é menor, mas o programa está focalizado entre os mais pobres, como pode ser observado pelo IC pró-pobre mais elevado nessa região.

No caso de consulta odontológica, a despeito da melhora observada entre os dois anos, os IC ainda se encontram em patamares elevados. Além disso, a taxa de utilização é diferenciada entre a população com e sem plano de saúde. Essa diferença provavelmente se deve mais à capacidade de financiamento das famílias do que à presença do plano uma vez que a cobertura para servi- ços odontológicos no Brasil é pequena (ANSS 2011). Barros & Bertoldi (2002), analisando os dados da PNAD de 1998, constataram que o financiamento dos serviços odontológicos é distinto do observado para os serviços médicos, tendo o SUS e os planos privados de seguro saúde reduzida participação no financiamento desses serviços.

A análise do indicador de problema de acesso aos serviços de saúde é uma forma de avançar no entendimento da presença de desigualdades no cuidado ambulatorial uma vez que corrige para a demanda não observada. A demanda não observada pode ocorrer em dois contextos. No primeiro, os indivíduos procuram os serviços de saúde e não conseguem atendimento. No segundo, os indivíduos não procuram atendimento mesmo diante da necessidade. Na PNAD, os motivos dessa não procura podem ser discriminados nas seguintes categorias: restrição monetária ou de tempo, dificuldade de transporte, localização do serviço, restrição na oferta de profissionais, ausência de acompanhante e problemas de informação. Esses motivos remetem aos fatores capacitantes definidos no modelo de Andersen (Andersen & Newman 1973, Andersen 1995). Nesse sentido, uma possível interpretação para o indicador proposto neste estudo recorre ao conceito de acesso potencial que é caracterizado pela presença desses fatores.

Os resultados obtidos para o indicador de problemas de acesso evidenciaram a presença de desigualdade social favorável aos mais ricos nos dois anos analisados. Em 2008, para o Brasil, o IC era igual a -0,22, indicando que o problema de acesso estava concentrado entre os indivíduos mais pobres. Essa desigualdade é mais elevada que aquela encontrada para os indicadores de utilização. Ao padronizar para a presença de plano de saúde, a desigualdade no indicador de problema de acesso se reduziu consideravelmente. Essa evidência sugere que parte da desigualdade no acesso aos serviços de saúde no Brasil tem origem no arranjo institucional que permite duplo acesso ao sistema para os indivíduos que têm capacidade de pagamento. A evidência empírica internacional corrobora a presença de maiores iniquidades em sociedades que optam por sistemas de saúde mistos no financiamento (Joumard et al. 2010, Paris et al. 2010).

Em relação ao cuidado hospitalar, não ocorreram alterações importantes no nível de utilização no período analisado considerando constante a composição etária e de sexo. Esse resultado provavelmente decorre da forma como esse cuidado é financiado no Brasil que fixa o orçamento em função de um percentual da população pré-estabelecido. Essa estrutura de financiamento permite que as características da oferta determinem o cuidado hospitalar (Castro et al. 2005, CONASS 2011 a). Considerando a desigualdade social na utilização desses serviços, em todas as regiões, a magnitude foi pequena e favorável aos mais pobres. A ausência de desigualdade social no cuidado hospitalar também é observada em outros países (Asada & Kephart 2007, Keskimäki et al. 1995). O comportamento do IC quando padronizado por componentes demográficos e de saúde refletiu novamente a estrutura etária mais envelhecida dos grupos de maior renda e as piores condições de saúde dos indivíduos mais pobres.

Historicamente, a oferta de serviços de saúde no Brasil foi organizada priorizando o cuidado hospitalar, principalmente tratamento de eventos agudos e cuidados emergenciais. Esse arranjo institucional tem sido relativamente exitoso para atender a demanda efetiva para cuidados emergenciais e eventos agudos, negligenciando, entretanto, a demanda eletiva para cuidado hospitalar e a demanda ambulatorial por cuidados preventivos (Mendes 2009). Car- valho & Gianini (2008) em estudo realizado para a cidade de Sorocaba, São Paulo, encontraram que o tempo de espera para realização de cirurgias eletivas é maior para indivíduos de menor renda e escolaridade e tratados nos hospitais públicos. Segundo esses autores, a presença de desigualdade social está associada ao tipo de estabelecimento em que o indivíduo recebe atendimento, sugerindo que o sistema público no Brasil ainda não está organizado de forma adequada para oferecer serviços hospitalares eletivos.

O presente trabalho apresenta pelo menos três limitações. A primeira limitação se refere às medidas de saúde disponíveis na PNAD, as quais não são suficientes para considerar a gravidade do estado de saúde e o tipo de serviço demandado. A impossibilidade de se obter uma medida mais fidedigna do estado de saúde individual pode resultar em subestimação da desigualdade social, particularmente no cuidado hospitalar. Os indivíduos mais pobres, por terem menos acesso aos serviços preventivos, chegam ao sistema de saúde com estado de saúde mais precário, e apresentam, portanto, maior necessidade de internação vis a vis os indivíduos mais ricos. Além disso, há evidências na literatura de que a desigualdade se manifesta de forma diferente dependendo do tipo de serviço demandado (Carvalho & Gianini 2008). Na PNAD, a medida de internação hospitalar é ampla e não permite distinguir pela severidade e tipo de cuidado recebido.

Outro aspecto que merece ser ressaltado diz respeito à melhora nas condições de vida da população brasileira observada no período Victora, Aquino, Leal, Monteiro, Barros & Szwarcwald (2011). O presente estudo mostra uma melhora evidente nos indicadores de utilização e nas medidas de desigualdade social. Em parte essa melhora é creditada aos avanços recentes do sistema de saúde brasileiro, mas não se pode negligenciar os efeitos que o desenvolvimento econômico pode ter causado nesses indicadores. Na literatura empírica internacional e nacional existem evidências acerca da associação positiva entre desenvolvimento econômico e saúde (Deaton 2003, Sachs 2001). Um avanço na literatura seria avaliar a contribuição do sistema de saúde controlando para o efeito do desenvolvimento econômico.

A terceira dificuldade é que a variável sobre a cobertura do PSF só está disponível para o ano de 2008. Portanto, não é possível avaliar a evolução da desigualdade nesse indicador ao longo dos dez anos. Além disso, não é possível testar se as reduções nas desigualdades socioeconômicas na utilização dos serviços de saúde decorrem desse fator. A única análise possível é através de um recorte transversal e, portanto, as conclusões não podem ser extrapoladas para explicar a evolução temporal desse indicador. No caso específico do PSF, a cobertura apresentou uma expansão considerável entre 1998 e 2008, passando de 29,6% para 60,4%, enquanto a cobertura privada alterou-se apenas de 24,4% para 25,9% 5. Dado que a cobertura do PSF sofreu maiores mudanças nesse período e a cobertura privada de plano de saúde permaneceu praticamente estável, acreditamos que a redução da desigualdade social na utilização dos serviços de saúde observada entre os dois anos analisados deve-se em grande medida à expansão dessa política de saúde no país.

Recebido em 11 de maio de 2012

Aceito em 2 de outubro de 2013

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    Mônica Viegas AndradeI; Kenya Valéria Micaela de Souza NoronhaII; Renata de Miranda MenezesIII; Michelle Nepomuceno SouzaIV; Carla de Barros ReisV; Diego Resende MartinsVI; Lucas GomesVII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      11 Maio 2012
    • Aceito
      02 Out 2013
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